Viaja-se por um punhado de coisas. Viaja-se para descansar, para aprender, para se divertir, para descobrir. Para rir, para conhecer, para ver, ouvir, sentir. Por tudo isso ao mesmo tempo e mais: quem viaja é curioso. O que nos move é aquela curiosidade deliciosa de tentar entender como é a vida das pessoas que moram naquele lugar. Daquela gente que tem essa vida diferente, mora diferente, come diferente, assiste diferente, crê diferente. Como é viver diferente da gente? Como é crescer assim? O que se come no café da manhã? Que biscoito se come? Que refrigerante é quase-igual-mas-completamente-diferente do nosso? Como se diz bom dia? Se diz bom dia? São tantas coisas, tantos detalhes, tiques, manias, hábitos que fazem de cada país, cidade, bairro, um. Para nós, uma boa viagem proporciona essa oportunidade: a de absorver cada um desses pontos. Nos detalhes, nos cantos e entrelinhas. Ficamos felizes quando voltamos para casa entendendo a alma do lugar que visitamos.
E para entender a alma do lugar o negócio é se perder. Vira uma esquina errada, desce uma estação antes ou depois, para pra fazer xixi. E é aí, fora do script, sem você nem perceber, que você encontra: a alma do lugar está ali, naquele lugar esquecido pelos turistas, naquela portinha com uma música diferente tocando, naquela velhinha olhando pela janela, naquele senhor de terno deitado no chão do parque, descansando. Naquele lampejo de vida, às vezes você entende um país todo.
Como foi naquele dia. Depois de viajar por um monte de cidades na França, fomos para Lyon. Tínhamos um objetivo, traçado desde o início da programação da viagem: participar do Festival das Luzes. Vimos sites, vídeos, matérias, piramos. Que evento lindo! E ia acontecer quando estivéssemos na França! E nos programamos pra ir.
Daí que o evento foi legal, mas não incrível. As obras expostas eram bonitas, o clima era divertido, mas nada que justificasse nossa hospedagem no pior apartamento de Airbnb de nossas vidas, nem um desvio tão grande na viagem. Mas foi num bar, no meio daquele evento, que descobrimos mais um pouquinho da alma da França.
O Festival das Luzes é um momento peculiar na cidade de Lyon – são 3 noites com atrações luminosas pela cidade toda. E especialmente para este evento, quase todos os restaurantes – e pessoas físicas também! – abrem barraquinhas na calçada para vender comidas e bebidas quentes aos visitantes que andam pela cidade, no frio. As atrações não chegam a virar a noite, mas funcionam até bem tarde e, apesar das barraquinhas, os restaurantes em si não ficam abertos até o fim da noite. Meus amigos, e o xixi? É claro que a bexiga da Fran se manifestou em algum momento e algo precisou ser feito a respeito.
Já estávamos acostumados com esse tipo de manifestação – a vontade de fazer da xixi da Fran já tinha levado a gente a muita coisa legal naquela viagem. Só naquela roadtrip já tínhamos parado para o xixi em lugares incomuns como restaurantes ainda fechados (a dona e o dono nos receberam descascando batatas), lojas de ferragens, franquias de restaurantes de estrada com tema norte-americano (saudades, Buffalo Grill) e principalmente em banheiros públicos das cidades – sim, cidades pequenas da França têm banheiros públicos. Contam até com placas de trânsito que apontam – “o WC Municipal é por ali”.
E lá fomos nós, no meio do Festival das Luzes, bater na porta de um restaurante, com ares de bar pouco famoso, bem local, para usar o banheiro. Ao entrar no bar, com aquela cara de estrangeiros perdidos, encontramos ele meio fechado, ninguém nas mesas. Mas havia, sim, era um punhado de franceses e francesas de variadas idades reunidos em volta do balcão. Uns pegavam bebidas de trás do balcão, na maior familiaridade, outros brindavam. Eles não se importaram conosco. Eles nos olharam, cumprimentaram com o queixo e continuaram sua canção. Sim, porque estavam cantando. Olhando no celular, acompanhando a letra que caçaram no Google, todos boêmios, cantavam Champs Elysées.
Aquela cena grudou na nossa cabeça como uma das cenas mais francesas que vimos na França. Não foi nada de mais. Foi demais. Foram 15 minutos que nos marcaram mais que qualquer restaurante de Lyon. Se escrevêssemos em um livro, se colocássemos numa história aqueles franceses cantando desafinados e meio bêbados “Aux Champs Elysées” no escuro olhando a luzinha da tela do celular, ia parecer invenção, estereótipo até. Se procurássemos essa cena não encontraríamos. Mas ela nos achou naquela portinha onde batemos naquela noite iluminada.
“Je m’baladais sur l’avenue
Le cœur ouvert à l’inconnu
J’avais envie de dire bonjour à n’importe qui”
“Andando pela avenida com o coração aberto ao desconhecido com vontade de dizer bom dia a qualquer um”. É assim que começa essa canção. E não é esse, afinal, o espírito do viajante sem fila?
It was in one closed bar, in France, looking for a bathroom, that we found the true spirit of France. There, after the bar was closed, men and women of all ages sang together “Champs Elysées”. It was a scene we found by chance. And it was a scene we’ll never forget. That scene proved us that to understand the soul of some place, one needs to get lost. Needs to turn the wrong corner, lose the right station, pee in a closed bar. And it’s there, out of the script, without you even realizing, that you’ll find: the soul of the place is there, in that place forgotten by the tourists, in that door with a different song playing, in that old woman looking out of the window. In that gentleman in a suit lying on the ground of the park, resting. In that flash of life, you can understand a whole country. What are your experiences finding out some place’s soul?